Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa
O texto do “Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa”, um espetáculo da Sara Barros Leitão/Cassandra, foi publicado em livro. Trata-se de uma edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, com apoio da República Portuguesa- Direção Geral das Artes, posfácio de Inês Brasão, autora de um artigo do Le Monde sobre a peça, e revisão de Madalena Alfaia[1]. O espetáculo, em cena pelo país desde 2021, é composto por 16 cenas e resulta de um intenso trabalho de pesquisa sobre o primeiro Sindicato do Serviço Doméstico em Portugal. Nos anos 90, este sindicato foi incorporado no Sindicato dos Trabalhadores de Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e Actividades Diversas (STAD).
A obra, que aqui se divulga, recupera o valioso legado de uma atividade laboral muito desvalorizada e invisibilizada, desenvolvida por mulheres sujeitas a condições laborais muito precárias e, tantas vezes, ao assédio dos patrões. A mobilização para a constituição do sindicato ocorreu apesar da atomização da atividade e de todas as dificuldades daí resultantes. Muitas destas mulheres só tinham folga ao domingo, eram analfabetas e estavam, desde muito novas, desenraizadas e longe da sua terra natal. Ainda assim, uniram-se para reivindicar direitos laborais. O sábado era o dia de fazerem um bolo às escondidas, na casa das patroas, para levarem para as suas reuniões (tal como se teve ocasião de se evocar, na apresentação do livro, no Porto). São um exemplo notável de luta.
Nos nossos dias, a realidade mudou, mas muitas das trabalhadoras domésticas continuam em situação de vulnerabilidade. O regime jurídico do trabalho doméstico até à revisão de 2023 continuava a ser o que vigorava na década de 1990. Veja-se que no decreto-lei que regulava o serviço doméstico ainda estava previsto um período normal de trabalho de 44 horas, em lugar das 40 horas.
“Hoje, muitas empregadas domésticas em Portugal são mulheres emigrantes. Mulheres racializadas. Mulheres sem papéis. Mulheres que não dominam a língua. Mulheres que, mais uma vez, estão isoladas e desprotegidas.
É a mulher que, ao lavar ao polibã, se agarrou ao vidro. Partiu-se em cima dela. A perna ficou toda cortada. Tentou sair para pedir ajuda. Os patrões trancavam sempre a porta da rua para terem a certeza de que ela não roubava nada. Trabalhadora doméstica brasileira. 2019.
A que dormia na despensa. Um dia fugiu pela janela. Desde esse momento, não consegue ir sozinha a nenhum sítio. Perde-se, não sabe onde está, fica em pânico. Trabalhadora doméstica romena. 2014.
A que trabalhava como interna Não sabia onde estava, não falava português, passava fome. Os patrões tinham uma lista com a comida que havia na despensa. Trabalhadora doméstica ucraniana. 2015″.[2]
O texto, resultante de uma laboriosa pesquisa, partiu de uma cuidada análise de várias fontes, entre as quais o arquivo da CGTP, que guarda o legado do Sindicato do Serviço
Doméstico, criado na década de 1970, mais propriamente em 1974. Esta nova organização sindical parecia antecipar uma revolução prestes a florir. O estudo prévio que foi desenvolvido para preparar o espetáculo contou com as contribuições de várias das fundadoras do sindicato, entre as quais da sua presidente, Conceição Ramos, e do escritor açoriano Olegário Paz, autor da obra “Empregadas Domésticas – Mulheres em Luta (para a história do serviço doméstico em Portugal- das origens ao fascismo). A investigação teve o contributo de sociólogos, juristas, sindicalistas e foi coordenado pela socióloga Mafalda Araújo.
Podem encontrar mais informações sobre o espetáculo e comprar a obra em Monólogo de uma mulher (…) — cassandra.
[1] Inês Brasão (2022), Levar no corpo a sobrevivência, Le Monde Diplomatique (edição portuguesa), Disponível em: https://pt.mondediplo.com/2022/02/levar-no-corpo-a-sobrevivencia.html
[2] Sara Barros Leitão (2024), Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, cit. p. 63.