Revisitar a presunção de laboralidade
Revisitar a presunção de laboralidade
Se continuar desregulada, a digitalização terá efeitos disruptivos incontroláveis na sociedade.
O Governo quer revisitar a Agenda do Trabalho Digno e a presunção de contrato de trabalho dos trabalhadores de plataforma. A solução final, garantiu a ministra do Trabalho, será decidida com os parceiros sociais na Concertação Social. Em causa estão os “indícios” que permitem aferir se os trabalhadores de empresas como Uber ou Glovo devem ter um contrato de trabalho. A ministra entende que é preciso “adaptar o sistema jurídico à realidade”.
A distinção entre trabalho independente e trabalho subordinado
Na segunda metade do século IXX, os juristas liberais opunham-se ao reconhecimento legal da relação de subordinação. Apesar da escandalosa exploração do trabalho pelo capital que então vigorava, abdicar do pressuposto de igualdade contratual seria ferir a dignidade dos trabalhadores, diziam os liberais. Só se “adaptou o sistema jurídico à realidade” no início do século XX, quando os países ocidentais criaram a figura jurídica do contrato de trabalho como relação assimétrica/desigual. Esse contrato estabelece uma relação de emprego, caracterizada pela subordinação e pela autoridade.
Claro que os motivos para rejeitar a relação de emprego como trabalho subordinado não se deviam tanto à salvaguarda da dignidade dos trabalhadores como à vontade de escapar às responsabilidades inerentes ao exercício da autoridade. Cento e cinquenta anos mais tarde, a definição da relação de emprego continua no centro da disputa política. A Business Europe, confederação empresarial europeia, é categórica: não quer que a Comissão Europeia defina o que é um “empregador” e um “empregado”. Tais definições, diz a Business Europe, são do domínio dos legisladores nacionais.
O argumento das plataformas é que são meras intermediárias entre prestadores e compradores de serviços, não são empresas empregadoras.
Vamos ao cerne da questão: o que é uma empresa?
Defino a empresa como sendo uma atividade produtiva coletiva. Como qualquer atividade coletiva, a empresa precisa de ser organizada (o trabalho tem de ser dividido e coordenado). Desempenhar a função de organização exige exercer poder e facilitar a cooperação. Nas empresas tradicionais, muito do poder exercido é de natureza não- coerciva; é autoridade, tal como Hannah Arendt a define.
Os economistas liberais definem a empresa como sendo uma rede de contratos celebrados livremente entre as partes. Negam, portanto, a natureza coletiva da empresa, o que significa negar a necessidade de exercício do poder. Ou seja, negam o carácter político da empresa.
A Uber e a Glovo são empresas? De que tipo?
Há, sem dúvida, diferenças substanciais entre as empresas tradicionais e as plataformas. Enquanto nas primeiras são gestores que organizam o trabalho entre trabalhadores que formam um coletivo, nas segundas são algoritmos que associam trabalhadores isolados a clientes. Mas os algoritmos tomam as mesmas decisões do que os gestores: decidem quem vai realizar tal tarefa para tal cliente e o montante da remuneração, controlam e monitorizam os trabalhadores em tempo real, atribuem as tarefas melhor remuneradas aos trabalhadores mais bem-comportados, avaliam e definem “perfis” em função do desempenho.
Como os trabalhadores não interagem entre si e são dirigidos por algoritmos, não tendo nunca interlocutores humanos e não havendo cooperação, o poder exercido pelas plataformas é de natureza coerciva.
Trabalho digno
Importa retomar a luta travada no século IXX e afirmar que os modelos de negócio viabilizados pelas tecnologias digitais são empresas em que se exerce poder. E se, como ameaça a Uber, esses negócios deixam de ser viáveis economicamente se forem sujeitos à legislação laboral, então, que desapareçam. Até porque muito desse trabalho consiste em tarefas servis; não é um “trabalho realmente humano”, nos termos da Organização Internacional do Trabalho.
O que está em causa no trabalho por plataformas não são só horas de trabalho, deficiente protecção social, baixas remunerações, e falta de férias, é também a dignidade do trabalho. A digitalização ameaça invadir muitas esferas do trabalho, pondo algoritmos a gerir trabalhadores. Sendo os algoritmos não-humanos, como podem tratar humanamente os trabalhadores? Se continuar desregulada, a digitalização terá efeitos disruptivos incontroláveis na sociedade.
É sim, hora de “adaptar o sistema jurídico à realidade”, como diz a ministra, ou seja, reconhecer que há exercício do poder no trabalho de plataforma. É hora de recusar “adaptar os trabalhadores” às possibilidades e ao poder da tecnologia.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico
PUBLICO, Opinião