Encarar a realidade: dilemas da direita e da esquerda face à questão ecológica
Encarar a realidade:
dilemas da direita e da esquerda face à questão ecológica
Numa altura em que se inicia a revisão do acordo de rendimentos, é tempo de se assumir que não vai haver mais riqueza nem mais recursos materiais – os que existem têm de ser mais bem distribuídos.
Na revisão do acordo de rendimentos (https://www.publico.pt/2024/05/08/economia/ noticia/preve-acordo-rendimentos-2089572), importa encarar a realidade que temos pela frente.
Segundo a OCDE, a taxa de crescimento seguirá a tendência das últimas décadas, ficando abaixo de 1% nos países ocidentais; ou seja, o “bolo” quase não aumentará. As famílias mais pobres têm suprido as necessidades básicas graças aos apoios dos Estados, mas os orçamentos públicos terão de suportar novos custos, relativos à segurança e à degradação ambiental, que restringirão as políticas sociais.
Os europeus consomem os recursos de quase “três Terras” por ano, o que é insustentável. Devemos utilizar menos cimento, menos carne, menos minerais raros, menos água. A produtividade agrícola mundial já diminuiu de 5% e continuará a diminuir, provocando a subida do preço dos alimentos. Os rendimentos dos mais pobres terão de aumentar.
A realidade é: não vai haver mais riqueza nem mais recursos materiais – os que existem têm então de ser mais bem distribuídos. É hora de seriamente enfrentar a questão das desigualdades.
Os dilemas da direita perante recursos limitados
Não nos enganemos: os economistas responsáveis sabem que o livre funcionamento dos mercados leva à concentração do capital e da riqueza, ou seja, ao aumento das desigualdades. Acreditar em modelos económicos criados para explicar e intervir no contexto do século XIX é hoje fatídico. Os 10% mais ricos emitem 48% do CO2 e só 10% dos impostos são pagos pelas empresas; querem que se continue assim?
Veja-se o que aconteceu ao sonho dos libertários da Silicon Valley, que queriam democratizar a sociedade e difundir gratuitamente o conhecimento científico universal. Em vez disso, transformaram-se em Digital Lords que hoje decidem o que compramos, como vivemos e trabalhamos, como não nos relacionamos com os outros. O seu poder não fica atrás do dos grupos petrolíferos, com as suas práticas de lobbying e corrupção.
Neste contexto, ir para a mesa das negociações sem a firme vontade de diminuir as desigualdades salariais significas aceitar que as elites sociais se apropriem de uma fatia cada vez maior de um bolo que não cresce. Medidas como o 15.o mês livre de impostos e contribuições traduzem-se, na prática, em retirar apoio aos mais pobres e às gerações futuras.
Quando a direita bloqueia medidas ecológicas por travarem o crescimento económico, está a privilegiar os poderosos em detrimento dos vulneráveis.
E que não digam que baixar, em termos relativos, os salários mais elevados prejudica a competitividade. O que realmente melhoraria a competitividade seria investir na economia verde, o que depende muitíssimo mais da consciência ecológica do que dos salários.
Quando a direita bloqueia medidas ecológicas por
travarem o crescimento económico, está a privilegiar os
poderosos em detrimento dos vulneráveis
Os dilemas da esquerda – denunciar a alienação ao consumo
O desafio para a esquerda não é menor. Lutar contra os malefícios do capitalismo significa hoje lutar não só contra a acumulação do capital mas também contra a acumulação do consumo por parte dos grupos sociais privilegiados. É ao motor do capitalismo do século XX, nomeadamente, crescimento económico material e aumento contínuo do poder de compra, que se tem hoje de renunciar.
A função da esquerda é criar um projeto político que dissocie ideologia do consumo material e qualidade de vida e que continue a pugnar por mais justiça no trabalho. Porque são os pobres e os jovens que mais sofrerão com os problemas ecológicos e as transferências sociais não poderão compensar uma desigualdade crescente dos rendimentos salariais.
Quem se preocupa com a coesão social não pode deixar que trabalhadores, como estafetas, operários agrícolas e cuidadoras, tenham condições de trabalho deploráveis. É o conteúdo do trabalho e o salário, e não os apoios sociais, que dignificam as pessoas.
A função da esquerda é criar um projeto político que
dissocie ideologia do consumo material e qualidade de
vida e que continue a pugnar por mais justiça no trabalho
A esquerda tem de levar para a mesa das negociações as questões ecológicas, negligenciadas nas políticas públicas e nos projetos empresariais. No que respeita à transição digital, o entusiasmo é generalizado, mas para a transição ecológica são necessárias políticas voluntaristas que aproveitem os financiamentos europeus, na esperança de um “crescimento verde”.
Quem está minimamente informado sabe que os problemas ambientais só se podem resolver com uma “transição justa”, a qual exige articular adequadamente trabalho, rendimentos e limites ecológicos. Uma reflexão ausente do debate público, tanto à direita como à esquerda.
(A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico)
“O Publico OPINIÃO”