SOLIDARIEDADE, FIASCO OU AMEAÇA REAL PARA O SINDICALISMO DE ESQUERDA?
O 74 lançou o TEXTO que podeis ler abaixo. É sobre “o sindicalismo” que o Chega anda a promover.
Nem de propósito, o tema foi abordado na última Assembleia Geral da PRAXIS.
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André Ventura anunciou há dois meses a intenção de promover a criação de uma federação sindical próxima do Chega. Polícias, médicos e professores estão entre os seus alvos. A extrema-direita portuguesa copia um modelo que o Vox tem usado contra a social-democracia. Que futuro terá em Portugal?
Foi entre a euforia e a algazarra que marcaram a III Convenção Nacional do Chega, realizada em Coimbra no final de maio de 2021, que Lucinda Estrela, da distrital de Faro, aqueceu a voz para apresentar a sua moção. Tema: sindicalismo.
“Depois do 25 de Abril de 1974, foi proposta a Unidade Sindical, algo proveitoso, pois uma voz é sempre mais forte do que várias, mas quem propôs essa unidade foram os marxistas-leninistas, que controlando a necessidade e vontade alheias, usurparam e absorveram os direitos legítimos dos trabalhadores em prol da teórica luta de classes”, começou Lucinda, escutando logo ali os primeiros apupos e assobios. A parte final da sua intervenção já foi praticamente inaudível, tal o volume do escárnio. “Alcançar o estatuto de Parceiro Social, como a CGTP-IN e a UGT, deve ser o objetivo maior da plataforma sindical do CHEGA!, ainda com nome a definir”, concluiu.
A rejeição à moção da militante algarvia foi total, algo que não causa estranheza tratando-se o Chega de “um partido maioritariamente assente em princípios económicos liberais”, diz ao Setenta e Quatro o secretário-geral, Rui Paulo Sousa. Lucinda regressou a Faro e nunca mais ouviu falar da sua proposta. O inaudito nascimento de um sindicato de extrema-direita parecia ter morrido logo antes do parto.
Mas André Ventura tinha outros planos. No passado dia 17 de outubro, em conferência de imprensa na sede do partido, o líder do partido surpreendeu toda a gente – inclusivamente dirigentes do Chega – ao anunciar a promoção de uma federação sindical. “O Chega, baseado no modelo espanhol decidiu promover, não criar porque não o pode fazer por lei, mas promover, dialogar, para incentivar a criação de uma nova federação sindical em Portugal”, afirmou. “Seremos o primeiro partido de direita a entrar diretamente e a participar nas questões do mundo laboral e sindical em Portugal, rejeitando uma abordagem histórica que levou a que partidos de centro-direita e direita nunca estivessem ligados a sindicatos.”
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O deputado manifestou a intenção de agregar forças sindicais em setores que considera determinantes, como “as polícias, professores, administração pública, profissionais de saúde e profissionais de segurança”. Segundo ele, o domínio do site já estaria registado, a homepage já existia e até se podia ler um nome: Solidariedade, o mesmo do sindicato promovido em 2020 em Espanha pelo Vox, partido da família política do Chega. Ventura esperava então que até ao final do ano a federação e os vários sindicatos estivessem constituídos e registados junto dos respectivos ministérios e reservou para o início de 2023 “uma primeira grande concentração pelos direitos dos salários dos trabalhadores, em Lisboa”.
O Setenta e Quatro questionou o Chega sobre o ponto de situação do sindicato, mas não obteve resposta até ao fecho da edição semanal. Contudo, apurou junto de fontes do partido que o projeto “ainda se encontra em fase embrionária”.
Além disso, o anúncio aconteceu antes de a medida ser discutida pela direção. “Eu sou da direcção nacional e posso assegurar que a questão nunca foi levada às reuniões”, diz Nuno Afonso, vereador da Câmara de Sintra e ex-braço direito de Ventura, atualmente em dissidência com a liderança do partido que ajudou a fundar. “Esta proposta acabou por ser aceite porque foi apresentada pelo André Ventura e os militantes fazem o que ele indica”. Não sem algum atrito: o deputado Diogo Pacheco Amorim foi um dos que torceu o nariz ao projeto, considerando-o “impensável”, segundo a Visão.
Como sempre, o líder acabou por reunir consenso. A aproximação aos sindicatos já tinha sido encarada pelos populistas de direita, embora noutros moldes. “Eu conhecia pessoalmente vários delegados sindicais e professores que se reviam em ideologias de direita e que precisavam de alguma representatividade”, explica Afonso. “A ideia não era criar um sindicato de raiz, mas ganhar os sindicatos de forma democrática, elegendo os delegados afetos às nossas ideias políticas.”
O mundo mudou entre a moção de Lucinda em Coimbra e o surpreendente anúncio de Ventura: à cabeça, a guerra na Ucrânia e os consequentes efeitos económicos, com o fantasma da recessão a pairar sobre a Europa e sobre a classe trabalhadora. “O Chega tenta assim cavalgar a onda da crise e cativar os setores mais descontentes, que se sentem abandonados, pouco reconhecidos e com salários baixos”, garante Elísio Estanque, investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. “Acredita que pode conquistar apoio junto da classe trabalhadora, tradicionalmente mais alinhada com a esquerda, nomeadamente com o Partido Comunista Português (PCP), usando um sindicato para se fazer conotar com as suas preocupações.”
Paralelamente, segundo fonte anónima do partido, os militantes do Chega sentiram o apelo de alguns pequenos sindicatos independentes afetos às forças de segurança, com quem reuniram no último ano, sedentos de um maior papel do grupo político na sua representação. O Chega viu aí um trilho para desbravar.
Por fim, a ligação ao Vox. De acordo com Nuno Afonso, o namoro começou com uma viagem da Juventude do partido a Madrid, em meados deste ano. “Foram tentar perceber como funcionava esta questão da plataforma sindical”, diz. A 8 e 9 de outubro, o próprio Ventura passou pela capital espanhola, onde discursou contra o socialismo e o comunismo no VIVA 2022, a festa anual do Vox, e trocou impressões com Santiago Abascal, líder da formação de extrema-direita. Uma semana depois, anunciou em Lisboa a sua federação sindical à imagem e semelhança da existente no país vizinho.
OS VENTOS DE ESPANHA
O Solidaridad espanhol conta com mais de 13 mil filiados e representação em quase 300 empresas. Tem marcado presença constante nas manifestações convocadas pelo Vox, as últimas das quais a 19 e a 27 de novembro, em Barcelona e em Madrid, onde pediram eleições antecipadas “contra o Governo da ruína, da insegurança e da traição”. Segundo Miguel González, jornalista do El País e autor do livro Vox S.A.: El negocio del patriotismo español, a presença nas ruas é mesmo a principal utilidade do sindicato para os populistas espanhóis.
“Não podemos ver a criação do sindicato como um ato isolado”, diz González ao Setenta e Quatro. “O que o Vox está a criar em seu redor são organizações de várias índoles, seguindo o modelo da esquerda, para fomentar aquilo que chamam de guerra cultural contra o socialismo. Além do sindicato, criaram uma fundação, várias associações de vizinhos — seguindo uma tradição do franquismo —, agremiações de caçadores, mulheres antifeministas, associações de vítimas da Covid-19, de pais, de professores, todo um emaranhado de instituições que pretendem recriar uma sociedade civil e lhes permite ainda mais acesso ao palco mediático.”
“O sindicato é como a infantaria do Vox, é usado para lançar campanhas contra partidos adversários e sindicatos de esquerda. Utiliza-o para fazer as coisas que ficariam mal a um partido com assento parlamentar”, explica Miguel González.
O sindicato baseia a sua atuação em 12 medidas, consideradas “urgentes”, que vão desde a “garantia da dignidade e dos direitos dos trabalhadores de Espanha contra os Governos, os interesses estrangeiros e os exploradores”, até “acabar com as subvenções públicas a sindicatos e associações patronais”. A precariedade laboral, a subida dos impostos, o desmantelamento da indústria espanhola e as “alarmantes” taxas de desemprego entre os jovens surgem à cabeça das preocupações no manifesto, onde os inimigos são o Governo socialista de Pedro Sánchez, os sindicatos de esquerda como a CGT e a imigração ilegal.
“A penetração geral do sindicato é muito pequena. A prova é que em Espanha para que um sindicato seja considerado representativo e tenha legitimidade para negociar tem de ter 10% dos delegados desse setor, e o Vox propôs uma emenda para que esse limite passasse para os 5%. Isso mostra que os seus delegados não chegam aos 10% exigidos”, afirma González. “Estão a tentar penetrar nos setores da segurança privada, onde têm muita adesão, nas polícias municipais e nos camionistas, que é um setor descontente com a subida dos preços dos combustíveis e com poder para paralisar um país com as suas greves. Também têm somado pontos na área agrícola, onde têm como bandeira o fim das importações de tomates e outros produtos de Marrocos, aproveitando os fundos e a influência que têm na Junta Agrícola de Castela e Leão, o único governo autónomo de que o Vox faz parte”.
O Solidaridade não exige a nacionalidade espanhola para a filiação — que custa entre os 5 e os 50 euros por mês —, embora a corrente nativista esteja expressa nas bandeiras sociais: prioridade aos espanhóis nos benefícios sociais e no emprego, o que colide com o conteúdo dos tratados europeus. O espírito nacionalista impera também na loja do sindicato: vendem-se t-shirts e canecas com o lema “Obrero y Español”. Embora defendam os direitos dos trabalhadores, os membros do Solidaridad votaram num empresário do ramo das telecomunicações e marketing, Rodrigo Alonso, para a presidência do movimento.
Alonso, parlamentar do Vox por Almeria, na Andaluzia, pertence à corrente mais radical do partido e é autor de frases que soam invulgares para um chefe sindical. “Os ricos continuam a ser ricos e os pobres são cada vez mais pobres. E a classe média não consegue ficar rica. A classe média desce à pobreza. Então, temos de engrossar a classe média. Esqueçam os ricos, os ricos são ricos por natureza”, afirmou. Alonso também causou muita polémica ao arrancar cartazes do sindicato de classe CGT no Parlamento da Andaluzia e ao lançar ofensas a deputados de esquerda. “O sindicato é como a infantaria do Vox, é usado para lançar campanhas contra partidos adversários e sindicatos de esquerda. Utiliza-o para fazer as coisas que ficariam mal a um partido com assento parlamentar”, explica González, que também aponta a contradição de o sindicato aceitar as subvenções estatais, embora lute contra elas.
O Solidaridade está longe de ser um caso único no contexto da extrema-direita europeia. Depois da II Guerra Mundial, as forças ultraconservadoras tentaram chegar ao meio sindical através de duas fórmulas: criação de sindicatos próprios ou infiltração em sindicatos já existentes. Em Itália, provavelmente o maior laboratório da extrema-direita europeia, as forças conservadoras sempre contaram com as suas próprias plataformas sindicais, umbilicalmente presas aos princípios do fascismo. Não foi, portanto, por acaso que Abascal tenha convidado para a apresentação do Solidaridad Francesco Paolo Capone, secretário-geral da Unione Generale del Lavoro (UGL), que mantém estreitos laços com a Liga, de Matteo Salvini.
Outros sindicatos estão sob a influência do Irmãos de Itália, partido da atual presidente do Conselho de Ministros, Giorgia Meloni. Primam pelo antagonismo em relação à ideologia de classe e pela unidade no mundo do trabalho em prol dos interesses produtivos da nação. Em Roma, os sindicatos sempre estiveram na frente de batalha entre a esquerda e a direita: há um ano, um esquadrão do grupo fascista Forza Nuova invadiu e vandalizou a sede do sindicato socialista da CGIL.
Já em França, o modelo usado pela extrema-direita foi alvo de mutações. Na década de 1990, a Frente Nacional (FN, hoje Reagrupamento Nacional, RN), impulsionada pela excelentes resultados obtidos pelo seu candidato, Jean-Marie Le Pen (pai da atual presidente, Marine Le Pen), no eleitorado da classe operária, partiu para a criação de sindicatos próprios nos setores da polícia, transportes públicos e educação.
“Esses sindicatos tinham como base uma ‘preferência nacional’, ou seja, a priorização dos supostos interesses dos franceses, sempre descritos como vítimas da violência e do crime dos imigrantes”, diz ao Setenta e Quatro Seongcheol Kim, investigador da Universidade de Bremen e autor de uma tese sobre os sindicatos das extrema-direitas belga, francesa e alemã. A incursão dos Le Pen pelo meio sindical teve uma existência curta: “Invocando o artigo L411-1 do Código de Trabalho, os tribunais franceses decretaram a ilegalidade dos sindicatos da Frente Nacional, dado estarem diretamente filiados a um partido político”, explica Kim.
“Os sindicatos a criar pelo Chega terão funções muitos semelhantes às dos fascistas enquanto movimento”, destaca o historiador Fernando Rosas.
Quando Marine Le Pen se tornou líder, em 2011, procurou abordar os operários através de uma estratégia alternativa. “Passou a recrutar membros de sindicatos estabelecidos para concorrer ao partido nas eleições, como o caso de Fabien Engelmann, que passou do sindicato marxista da CGT para a FN, abandonando a ostracização dos sindicatos dominantes que caracterizou a FN nos anos 1990”, concluiu o académico. É expectável que caso o Chega consiga incentivar a criação de uma federação sindical, deem entrada em tribunal ações contra a filiação partidária das suas associações, uma vez que a lei portuguesa nesta matéria é mais parecida com a francesa do que com a espanhola.
Já na Alemanha, a infiltração de ideais de extrema-direita no meio sindical antecedeu mesmo a fundação do partido de direita populista, a Alternative für Deutschland (AfD). Em 2009, Olivier Hilburger, um dirigente sindical com comprovadas ligações à cena neonazi, criou a Zentrum Automobil (ZA) na fábrica da Daimler em Estugarda. Desde então, a ZA não parou de somar lugares no conselho de trabalhadores – de dois, em 2010, para sete, em 2022 -, com um discurso orientado para a pacífica convivência entre operários e empregadores, contra a deslocalização de fábricas da Alemanha para países com mão-de-obra mais barata e o alegado monopólio sindical e as regalias do maior sindicato do setor, o IG Metall.
A experiência do ZA chamou a atenção da ala mais radical da AfD, partido fundado em 2013 com uma ideologia ultraliberal, que tentou promover uma aliança com o novo sindicato da indústria automóvel. “O tema originou muitas tensões entre os setores liberais e nacional-socialistas do partido, levando a uma demarcação oficial da AfD em relação ao sindicato de Estugarda”, explicou ao Setenta e Quatro Tim Ackermann, sociólogo do Instituto Educacional DGB e coautor da tese Sindicatos e populismo de direita na Alemanha. Entretanto, já este ano, o partido recuou na diretiva de desvinculação ao ZA, abrindo caminho a novas investidas no espectro laboral.
Como habitual, o Chega conta com um cardápio de múltiplas receitas já ensaiadas nas cozinhas da extrema-direita europeia. A originalidade não é, claramente, a prioridade. Até o nome do sindicato é decalcado de Espanha, que por sua vez instrumentalizou a marca criada por Lech Walesa, na Polónia, em 1980. Nessa altura, cerca de vinte sindicatos fundiram-se debaixo do símbolo do Solidariedade, um movimento socio-político apoiado pela Igreja Católica e pelo Papa João Paulo II, também polaco, com o objetivo de abalar o regime socialista polaco, aliado e instrumentalizado por Moscovo. Em 1989, aquando da realização das primeiras eleições livres em cinco décadas, Walesa, líder do movimento e Nobel da Paz em 1983, foi eleito presidente.
“O Vox e o Chega tentam assim recuperar essa mensagem anticomunista, atribuindo o nome de Solidariedade ao sindicato”, salienta Elísio Estanque. “No entanto, há uma grande diferença: nem Espanha nem Portugal vivem num regime totalitário comunista. Vivem em democracia.”
ECOS DO PASSADO
“A valorização dos trabalhadores, dos seus salários, das suas carreiras, não é uma questão de esquerda, nem de centro nem de direita, é uma questão de interesse nacional”. A frase proferida por André Ventura no anúncio da federação sindical causou arrepios a sindicalistas de esquerda e a alguns investigadores de história das relações laborais. É que a expressão “interesse nacional” – mesmo usada num contexto diferente – está ligada à retórica do corporativismo, o sistema laboral dominante durante o Estado Novo (1933-1974), subjacente à integração de trabalhadores e patrões no mesmo sindicato, com os primeiros subjugados ao poder dos últimos em prol do bem maior da nação.
Fernando Rosas, investigador do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), releva paralelismos entre os atuais sindicatos de extrema-direita e aqueles de índole fascista surgidos no período entre as duas guerras mundiais. “Os sindicatos a criar pelo Chega terão funções muitos semelhantes às dos fascistas enquanto movimento”, destaca Rosas. “São sindicatos fura greves destinados a combater a CGTP no mundo do trabalho, assim como as reivindicações dos trabalhadores, os processos de luta social e política contra os salários baixos, a precarização e a sobreexploração do trabalho.” O investigador acredita que a extrema-direita tentará recrutar pequenos sindicatos bastante inorgânicos na representação de classe para, desta forma, conquistar a classe trabalhadora “com uma retórica próxima do fascismo”.
Na opinião do historiador, a prioridade de cativar as polícias faz parte de uma estratégia mais abrangente de combate às liberdades individuais e democráticas. “Agitam reivindicações da polícia mas com um objetivo meta-sindical, pois o que pretendem é uma base de apoio armada, uma tropa de choque, de pressão sobre o regime democrático e sobre a liberdade sindical e o direito à greve. É sobre este modelo que o Chega vai avançar para tentar dividir ainda mais o presente modelo sindical”, afirma Rosas.
O Solidariedade não vai concorrer para primeiro sindicato de extrema-direita português. Em 1934, Francisco Rolão Preto fundou o Movimento Nacional-Sindicalista, caracterizado como antidemocrático, anticomunista, antiburguês, antiparlamentar, nacionalista, corporativista e familiar. Os “camisas azuis”, como eram conhecidos, faziam a saudação romana e tentaram derrubar por diversas vezes o ainda jovem regime salazarista, que viam como demasiado íntimo das elites capitalistas e inimigo dos operários. O grupo foi perseguido, alguns dos seus membros aderiram à União Nacional, o partido de Salazar, e Rolão Preto acabou forçado ao exílio em Espanha. Em 1934, Salazar proibiu o nacional-sindicalismo por decreto e os “camisas azuis” desapareceram.
“Não havia grandes diferenças entre o discurso corporativista dos ‘camisas azuis’ e o sistema implantado por Salazar”, analisa Rosas. “Até porque Salazar proibiu o movimento mas depois integrou os seus elementos na Legião, nos sindicatos verticais e noutros setores da demagogia social.”
André Ventura
O Chega tem replicado estratégias dos seus congéneres europeus de extrema-direita apresentando-as em Portugal como se fossem “novos caminhos à direita” | Ricardo Nascimento/LUSA
Por sua vez, António Costa Pinto, coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e autor de Os Camisas Azuis e Salazar: Rolão Preto e o Fascismo em Portugal, consegue descobrir semelhanças entre o passado e o presente, mas também destaca algumas das diferenças substanciais. “Há sempre princípios eternos neste campo político como a ordem, a disciplina, a moral, os valores tradicionais e conservadores. Mas há grandes diferenças nas estruturas partidárias e, essencialmente, não existe o papel de violência política reinante no fascismo”, sublinha Costa Pinto. “Estes partidos também têm menor consistência ideológica que os fascistas dos anos 1930, jogando mais no campo das regras eleitorais. Proclamam-se antissistema, mas até hoje não conhecemos nenhum caso que tenha rompido totalmente com a democracia, como são os exemplos de Orbán, Trump ou Bolsonaro.”
A classe trabalhadora acabou por ter, em determinadas ocasiões, um papel de relevo na constituição dos principais partidos fascistas e nacional-socialistas. “Em conjuntura de crise e pós-guerra, assumiram um programa social, com laivos anti-capitalistas, a favor do papel intervencionista do Estado, com o objetivo muito claro de roubar a classe operária à esquerda para desencadear uma revolução nacionalista e orgânica da sociedade”, afirma Costa Pinto. “Tiveram manifestos êxitos, uma vez que parte da elite fascista italiana vinha da esquerda e o partido nacional-socialista alemão foi fundado por dois operários. Conseguiram cativar largas fatias do eleitorado operário mas nunca passaram desse estado inicial para a formação de um sólido eleitorado operário popular.”
“É necessário que o debate público ajude a perceber que para os partidos da direita populista os trabalhadores são como a democracia: defendem-nos enquanto são-lhes úteis, depois já sabemos como é que é”, diz o sociólogo Elísio Estanque.
Tal como no passado, os sindicatos de extrema-direita contemporâneos apontam o alegado monopólio marxista dos sindicatos de classe como inimigo de referência. “Mas não foi o marxismo que inventou os sindicatos”, ressalva Elísio Estanque. “O marxismo tentou cavalgar as transformações da sociedade da era industrial, marcadas por interesses antagónicos entre patrões e operários. Depois essas doutrinas penetraram e marcaram tendências sempre heterogéneas no movimento sindical.
O académico de Coimbra alega que esta obsessão contra os sindicatos de classe é usual na doutrina de extrema-direita. “Faz parte da lógica do populismo a mobilização do povo contra a elite recorrendo a bodes expiatórios, não apenas os ciganos, as minorias, mas também o marxismo e o comunismo, que nas entrelinhas dos seus argumentos percebemos ser qualquer organização que escape ao seu controlo”, diz Estanque. “Para Bolsonaro, qualquer um que não esteja alinhado também é comunista. É necessário que o debate público ajude a perceber que para os partidos da direita populista os trabalhadores são como a democracia: defendem-nos enquanto são-lhes úteis, depois já sabemos como é que é.”
Graças ao sindicalismo de classe, recorda Estanque, foi possível criar um sistema guiado pelos princípios da coesão e justiça sociais, bem como transferir parte da riqueza acumulada nos mais ricos para benefícios sociais da classe trabalhadora. “Isto não começou agora. São estes 200 anos de história que Ventura não consegue apagar.”
ENTRE A DESCRENÇA E A APREENSÃO
Ao incluir as forças de segurança nos setores destacados para a sua nova federação sindical, André Ventura terá ainda na memória a entusiasta recepção que recebeu na manifestação de polícias de novembro de 2019. Foi carregado aos ombros de elementos do Movimento Zero, um grupo inorgânico de polícias e guardas prisionais que ganhou significativo peso no seio daqueles instituições, e isso conferiu-lhe a oportunidade de discursar perante os dez mil manifestantes que se concentraram às portas do Parlamento.
No entanto, o presidente do Chega ignorou um detalhe legal: “Está vedada às associações sindicais [de polícias] a federação ou confederação com outras associações sindicais que não sejam exclusivamente compostas por polícias no activo em efectividade de serviço na PSP”, decreta a lei sindical da PSP. Isto é, nenhum sindicato de polícias existente ou criado de base poderá fazer parte de uma estrutura sindical que abarque outros setores profissionais, afastando os agentes da autoridade de possíveis manifestações convocadas pelo Solidariedade. “As coisas ainda são feitas de forma muito ingénua no partido e dá a entender que o anúncio avançou sem que se tivessem equacionado profundamente os contornos do que estava a ser divulgado”, comenta Nuno Afonso.
José Dias, presidente do Sindicato de Pessoal Técnico da PSP (SPT/PSP) e antigo vice-presidente do Chega, também em rota de colisão com o partido, duvida inclusivamente que o sindicato veja a luz do dia. “Uma direita que defende sindicatos é estranho. Torna-se até duvidoso”, diz. “A mim parece-me mais propaganda do que outra coisa, até porque o poder dos sindicatos das polícias é muito limitado, uma vez que toda a gente, médicos, juízes, podem fazer greve, só os polícias não”.
O dirigente sindical afirma que o Chega fez um bom trabalho inicial ao pôr as precárias condições de trabalho dos polícias na ordem do dia mas que, com o tempo, caiu no descrédito junto de muitos dos seus admiradores iniciais. “Não ouviram o Chega falar da reforma das forças de segurança, da fusão das polícias, que é o que realmente interessa num setor que não conhece uma reforma desde o século XIX. Não o querem fazer porque este descontentamento lhes interessa, a revolta e a frustração é que alimentam os votos”, afirma. “E mesmo os que continuam a simpatizar com o Chega, não acreditam no Solidariedade, sabem que é um flop que não vai dar em nada porque os sindicatos da polícia estão de mãos e pés atados”.
Já o sindicato mais representativo da PSP, a Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP/PSP), não recebeu com espanto a intenção do Chega. “Quem acompanha estes fenómenos na Europa conhece os circuitos de implementação, pelo que este passo já era expectável”, diz ao Setenta e Quatro Paulo Santos, presidente do sindicato. “Mas não teve uma dimensão que nos levasse a fazer uma reflexão profunda sobre a questão. Passou-me um bocado ao lado, na verdade. Porque a ASPP tem quatro décadas de existência e já passou por várias tentativas de a dividir, de instrumentalização por parte de actores políticos e de criação de outras estruturas para a fragilizar. Passámos pela formação de outros sindicatos, pelo Movimento Zero, nada nos fez mossa. Estamos atentos mas sabemos que os polícias sabem reconhecer os seus legítimos representantes.”
Paulo Santos não descura, todavia, que a extinção do Movimento Zero, anunciada no passado mês de Agosto, possa estar ligada à expectativa de fundação de um sindicato do Chega, podendo alguns dos seus anteriores integrantes transitarem para debaixo da alçada do Solidariedade. “Parece-me evidente. O próprio timing e a evolução das coisas leva-nos a ter essa apreciação”, afirma. “O Movimento Zero tinha dificuldade em fazer algo de concreto, imprimir o que anunciava e para que pudessem ter um espaço formal de intervenção era notório que o movimento teria de se escudar numa instituição formal e organizada. Isso não significa que todos os seus membros passem para um eventual novo sindicato. Alguns deles sentiram-se instrumentalizados por um partido que não tem legitimidade para os representar.”
“Uma direita que defende sindicatos é estranho. Torna-se até duvidoso. A mim parece-me mais propaganda do que outra coisa”, diz José Dias.
Após as recentes investigações levadas a cabo pelo O Cónsorcio – Rede de Jornalistas de Investigação, do qual o Setenta e Quatro faz parte, e pela revista Visão, que revelaram mensagens de ódio e xenofobia de centenas de agentes policiais e a filiaçãopartidária ilegal de alguns deles aos Chega, respira-se na PSP um clima de muita cautela em relação à identificação com a extrema-direita. “Não tenho conhecimento de qualquer tentativa de envolvimento da parte de pessoal com esse sindicato”, diz um agente experiente da PSP, que pediu para não ser identificado por não estar autorizado a falar com a comunicação social. “Tem havido suspensões e demissões de pessoal que se limitou a escrever opinião. Não creio que alguém se atreva neste momento a ligar-se a esquemas partidários ou outros idênticos. Os sindicatos desmarcam-se disso, o Movimento Zero está morto e a título individual ninguém dá um passo.”
Mas não só das forças de segurança vive o projeto sindical de Ventura. Os professores também foram mencionados como potenciais alvos de aliciamento da nova estrutura num momento em que ferve o descontentamento da classe face à nova lei dos concursos, à excessiva carga horária e à falta de progressão de carreira.
“Há distritais em que o Chega conta com a filiação de vários professores”, diz Miguel Carvalho, jornalista da Visão e autor da recente investigação sobre o vínculo de agentes da autoridade ao partido de André Ventura. “Quando acabei esse trabalho, vários amigos meus, docentes, alertaram-me para a penetração do Chega nas escolas, que segundo eles pode até ser maior do que na polícia.” Contudo, Fátima Ferreira, presidente da Associação Sindical de Professores Licenciados (ASPL), diz ao Setenta e Quatro não estar a par dessa tendência: “Vi a notícia e fiquei preocupada mas não estou a ver nenhum sindicato do setor a colar-se a esse partido”. “Também não senti qualquer expectativa da parte dos associados, pois fazemos sessões de esclarecimento regulares e essa questão nunca nos foi colocada.”
Ao contrário de algumas estruturas sindicais na Alemanha, os sindicatos afetos à CGTP não lançaram ainda campanhas de sensibilização contra a propagação de ideais de extrema-direita pelos trabalhadores. Preferem apostar numa resposta acertada às reivindicações dos seus filiados, de forma a não deixar campo livre para a infiltração das mensagens populistas. “Temos de encarar mais esta investida oportunista da extrema-direita com preocupação, mas também como um desafio para os sindicatos de classe, de modo a encontrar força e criatividade para organizar o descontentamento que existe e encontrar respostas para os trabalhadores a braços com uma situação muito complicada, do ponto de vista laboral e social”, diz Rogério Silva, coordenador da Fiequimetal e membro da Comissão Executiva da CGTP-IN. “É um anúncio que provoca muito ruído mas depois cá estão os de sempre a dar resposta aos problemas dos trabalhadores”.
Apesar da descrença generalizada na relevância que um sindicato de extrema-direita possa alcançar em Portugal, Ventura poderá ter alguns trunfos na manga para levar avante os seus intentos. Paulo Ralha é um deles: antigo militante do PS, apoiante da bloquista Marisa Matias e contestatário da direita populista, acabou recrutado pelo seu amigo André Ventura para assessorar os deputados do Chega nas áreas de Economia e Finanças. Tem experiência como presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos. “Ralha tem um largo percurso na área sindical e pode ser uma peça importante para a criação do movimento sindical, até porque geriu proximidades entre setores antagónicos, no Bloco, no PS e agora no Chega”, diz Miguel Carvalho, jornalista da Visão que tem investigado o Chega.
O desprezo pelos anúncios de Ventura já deu maus resultados aos seus adversários políticos: a ascensão eleitoral do Chega começou por ser desvalorizada até que o partido de extrema-direita conseguiu chegar aos 7% nas últimas legislativas e eleger 12 deputados. O mesmo está a acontecer em relação ao nascimento de uma federação sindical que, no futuro, pode estar presente em manifestações e vigílias, conferindo ainda mais visibilidade ao ideário nacionalista.
“Tenho conhecimento de que o Chega, ao contrário do que alguns estudos revelam, tem de facto uma dimensão nacional, bem como militantes e dirigentes com percurso sindical em algumas zonas do país. É gente que vem de partidos de esquerda, do PCP, do Bloco, antigos candidatos ou delegados sindicais”, afirma Miguel Carvalho. “Resta saber se eles conseguem ou não organizar-se e capitalizar esses efectivos. É importante não desvalorizar.”