DA INFLAÇÃO, DOS SALÁRIOS E DAS LUTAS LABORAIS
Os dados divulgados nestes dias pelo INE confirmam a razão das lutas laborais em curso e do elevado descontentamento social. E a situação em que estamos mergulhados exige que a ação coletiva não dispense a reflexão crítica sobre o que está a acontecer e para onde vamos ou queremos e podemos caminhar.
- Uma inflação muito elevada e persistente:
A inflação em Fevereiro continua elevadíssima – 8,2% (8,6% no chamado IHPC – índice harmonizado de preços no consumidor – usado pelo Eurostat para comparações internacionais) e o consumo das famílias, perante a forte erosão do poder de compra, baixou o ano passado. É verdade que em Janeiro a inflação fora de 8,4%, mas esta redução insignificante de 0,2 entre Janeiro e Fevereiro é ilusória, porque foi conseguida à custa da conhecida redução dos preços da energia. A chamada “inflação subjacente”, que subiu para 7,2%, e que exclui a energia e bens alimentares não transformados, é a este propósito mais significativa, porque demonstra o papel crescente da especulação dos preços pelas empresas feita à boleia da desculpa da energia e da guerra. Na verdade, a subida dos preços adquire uma dinâmica relativamente autónoma, ancorada na ganância das empresas em conquistar margens de lucro adicionais. A inflação média de 2% prevista no Acordo de Rendimentos celebrada na CPCS para a legislatura, que é um dos pressupostos do referencial construído para os aumentos salariais (5,1% em 2023) é cada vez mais questionável.
- Desemprego a subir lentamente, mas também a população activa empregada a crescer ligeiramente:
A taxa de desemprego está a subir (Janeiro – 7,1%) consecutivamente nos últimos seis meses e é já a mais elevada desde Novembro de 2020. Ao mesmo tempo, a população ativa empregada (4 892,7 mil) registou um ligeiro acréscimo, enquanto a população inativa (2 424,7 mil) diminuiu 0,4% em relação ao mês anterior, o que, exigindo melhor estudo, pode significar alguma transferência de população inativa para população empregada e também ser efeito dos fluxos migratórios. Outro indicador não menos relevante: a taxa de subutilização do trabalho, que abrange desempregados, mas também os que desistiram ou encontram obstáculos em procurar trabalho e os que trabalham em tempo parcial e aspiram a horário completo, atingiu os 12,4%, sendo já 671,8 mil nesta situação, o valor mais elevado desde Junho de 2021.
- Aumentou o PIB, aumentam as receitas fiscais do Estado, aumentam os lucros das empresas, descem os salários reais
O PIB cresceu 6,7% em 2022, embora esteja agora a abrandar significativamente. As Administrações Públicas registaram um excedente de 2.013 milhões de euros no mês de Janeiro, a receita fiscal aumentou 10,5% face ao mesmo período de 2022, o IRS subiu 14% e o IVA 11,9%. Continuando a inflação a encher os cofres do Estado, mas não a ser feita a justa e devida redistribuição e investimento social. O ministro das Finanças declara orgulhosamente que a dívida pública desceu para 113,8% do PIB, o que seria o nível mais baixo desde 2010. Mas os salários reais, no último trimestre de 2022, caíram 5,2%, enquanto os lucros declarados pelas grandes empresas sobem por todo o lado, da banca à energia, dos serviços à indústria. O que mostra como a teoria dos (ultra)liberais de que a maior acumulação de riqueza no topo permite também distribuir melhor o rendimento por todos é uma falácia, desmentida aliás pela crescente desigualdade, por cá e no mundo.
- A negociação salarial no setor público e no setor privado
As lutas laborais, concentradas neste momento sobretudo na Administração Pública e nas empresas públicas, enfrentam, no caso das empresas públicas, uma interpretação do Governo/M. Finanças/Administrações que, além de recusar a compensação da inflação nos salários, é fortemente limitadora e restritiva dos aumentos salariais, entendendo os 5,1% do referencial para os aumentos salariais do Acordo de Rendimentos como limite e como respeitando ao aumento da totalidade da massa salarial e não apenas das tabelas salariais, o que agrava ainda mais a perda dos salários reais.
E no entanto, embora longe ainda de se poder fazer qualquer balanço dos processos laborais e dos seus resultados salariais, e permanecendo a tendência para que os salários não acompanhem a erosão sofrida com a inflação, já se verificam casos no setor privado de negociação salarial mais positivos. É o caso da negociação do SINDEL com a EDP, em que conseguiu acordo para 5,1% de aumento na tabela salarial (portanto, significativamente superior no acréscimo da massa salarial), além de outros benefícios materiais. Ou como aconteceu recentemente na Autoeuropa, em que a CT negociou, com apoio da maioria dos trabalhadores, um aumento salarial de 5,2% (mais um prémio mensal de assiduidade). Em ambos os casos, furando o bloqueio patronal que tende a interpretar o acordo que assinaram como entendendo o aumento de 5,1% como respeitando à massa salarial e como sendo um limite intransponível.
O Estado, ou antes, o Governo, está a acumular, por responsabilidade própria, tensões e conflitos, a somar ao descontentamento e à luta justificada de setores profissionais inteiros, como os professores, os trabalhadores da saúde ou os oficiais de justiça, por prosseguir uma orientação austeritária em relação ao mundo do trabalho, que assim suporta a principal fatura da inflação. Esta orientação governativa facilita que o descontentamento possa ser aprisionado por uma direita e uma extrema-direita que não se cansam de atacar e culpabilizar o “socialismo” a propósito do combate às políticas e medidas do Governo.
- Interpretar e refletir sobre as mudanças no mundo do trabalho e no sindicalismo
Num quadro em que permanece uma baixa sindicalização (7,4% no setor privado – 14,7% nas empresas com mais de 250 trab., dados dos Quadros de Pessoal publicados no Boletim Estatístico do GEP/MTSSS de Fev. 2023), e em que ao mesmo tempo continuam a ser criados novos sindicatos disputando a representação dos trabalhadores e em que a maioria dos sindicatos existentes e dos que são criados não se filiam nas centrais sindicais, emergem, por boas e por más razões, novos protagonistas no mundo do trabalho organizado, com e sem alinhamentos políticos, num tempo de crescente descontentamento social e de brutal agravamento das condições materiais dos trabalhadores e das famílias.
Já muito se tem falado, no caso da luta dos professores, de como um sindicato (o STOP) tenta disputar a representação dos professores à organização sindical dominante (a FENPROF) e aos outros sindicatos representativos, não hesitando em recorrer, com a proteção mediática da “novidade” para se afirmar, a métodos de luta condenáveis, como a instrumentalização de auxiliares para fechar as escolas sem os custos de uma greve efetiva dos professores.
Vale a pena olhar também para o caso das greves em curso do sector ferroviário. Hoje, com elevada adesão, foi convocada por uma plataforma de nove sindicatos (que já convocara também a greve de 27 Fevereiro): cinco não são filiados em centrais sindicais, um é filiado na UGT e três são filiados na USI, organização identificada com um sindicalismo normalmente considerado à direita, a que se associou também o SINTAP, da UGT. O SNTSF, da CGTP, pelo seu lado, convocou outra greve do setor ferroviário para ontem, dia 28 e para amanhã, 2 Março. A elevada adesão da greve convocada pela plataforma de nove sindicatos mostra como a hegemonia passada da organização sindical ferroviária da CGTP foi superada por uma maior fragmentação e diversidade da representação, com a emergência de sindicatos que, pelo menos originariamente, foram parte deles constituídos a partir de categorias ou grupos profissionais insatisfeitos e, noutros casos, para desafiar a hegemonia política e sindical do sindicato dominante.
Este ano de lutas sociais e laborais, ainda no início, reforça a necessidade de refletirmos sobre as mudanças em curso no mundo do trabalho e quais são os caminhos do fortalecimento e da renovação do sindicalismo e da sua capacidade de atração e representação dos trabalhadores. Para onde caminhamos, o que queremos e o que podemos. Grande desafio e escolhas difíceis em tempos muito exigentes.
Henrique Sousa
10-03-2023