Debate “Extrema-direita, trabalho e sindicalismo – Da radiografia à acção necessária” Práxis, 8 Fevereiro 2024
Debate “Extrema-direita, trabalho e sindicalismo – Da radiografia à acção necessária” Práxis, 8 Fevereiro 2024
Introdução do debate e notas finais:
Propomos iniciar com este debate um processo de análise e reflexão colectivas sobre a penetração da extrema-direita no mundo do trabalho e do sindicalismo em Portugal. Sobre o que importa
fazer para que os valores democráticos e solidários do sindicalismo se fortaleçam e não sejam degradados por quem está nos antípodas dos combates pela igualdade, pela emancipação dos trabalhadores, pelo reforço dos seus direitos e da sua participação, os quais são a história e o código genético do movimento operário.
Este é um debate pioneiro porque parece ainda faltar em Portugal uma análise sistemática e preocupada pelo sindicalismo deste fenómeno que cresce no mundo do trabalho organizado e do perigo representado pelas tentativas continuadas da extrema-direita de penetrar nas fileiras sindicais e nas organizações de trabalhadores e de instrumentalizar movimentos ditos “inorgânicos” de protesto social e laboral. Que assim tenta ganhar protagonismo e desviar o protesto social para o confronto com o regime democrático de que é principal adversária. E que assim procura enfraquecer a capacidade de representação e de enquadramento dos sindicatos e das organizações de trabalhadores, os quais procuram integrar a mobilização e o protesto sociais no quadro das instituições e do fortalecimento da democracia política e social.
É igualmente um debate oportuno porque o crescimento eleitoral do partido Chega, no ano em que celebramos 50 anos das portas que Abril abriu, alerta ainda mais para a capacidade de atracção junto de segmentos dos trabalhadores, dos jovens e das classes populares, os quais canalizam para este partido da extrema-direita o seu protesto e o seu ressentimento quanto ao estado social e político do país.
O Chega passou da eleição de um deputado em 2019 com pouco mais de 1% dos votos para terceira força política nas eleições legislativas de 2021, com 12 deputados. Depois, nas presidenciais de 2021, atingiu quase meio milhão de votos. E todas as sondagens prevêem o seu crescimento significativo nas próximas eleições. Tem sido fortemente promovido por uma comunicação social mercantilizada, cada vez mais dependente do imediatismo das redes sociais e que vê no discurso de André Ventura fonte permanente de audiências.
A chamada “excepção ibérica” de Portugal e Espanha durante anos comentada por investigadores e analistas em comparação com os avanços da extrema-direita no resto da Europa, revelou-se afinal falsa, sendo apenas mais uma prova de que as correntes políticas e culturais, as mais adversas, também chegam a este canto ocidental da Portugal, como também antes sucedeu em Espanha com o Vox. Só que mais tarde.
As propostas e princípios do Chega caracterizam-no como um partido adversário da Revolução de Abril, da nossa Constituição democrática; defensor do que chama a 4º República que eliminaria muitas das conquistas e direitos alcançados; partido nacionalista, conservador e autoritário; populista e adversário do Estado Social e inimigo das suas políticas redistributivas; adepto da destruição do actual sistema fiscal e da sua progressividade; defensor da subordinação dos trabalhadores ao capital e liberal na protecção absoluta da propriedade privada, colocada acima dos direitos sociais. Um partido xenófobo e racista, homófobo, antifeminista e hostil na sua relação com os imigrantes e com outras culturas. Nativista e divisivo dos trabalhadores com a sua defesa da chamada “preferência nacional”, que quer discriminar os trabalhadores imigrantes, aliás essenciais à nossa economia e à própria Segurança Social, na sua relação com os direitos do Estado Social.
O discurso social que agora tem ensaiado, em relação aos trabalhadores e aos reformados, visa encobrir a violência antidemocrática dos seus propósitos, de que os trabalhadores e reformados que diz defender seriam as primeiras vítimas.
É necessário aqui desmontar a proposta demagógica do Chega em relação à igualização da pensão mínima ao salário mínimo no final da legislatura, que poderá ser de 1100 ou mais euros. Além de evidentemente irrealista do ponto de vista da sustentabilidade das finanças públicas, tem um objectivo oculto bem mais grave e que André Ventura, na sua lógica destrutiva do Estado Social e da Segurança Social pública, esconde por detrás da medida: acabar com o incentivo para os trabalhadores, na sua vida activa, descontarem para o regime previdencial e a pensão futura, de acordo com o princípio de solidariedade intergeracional que caracteriza o nosso regime previdencial. Afinal, para a maioria dos trabalhadores que recebem salários reduzidos, ter supostamente garantida uma pensão mínima de mais de 1000 euros poderia desmobilizar o pagamento das contribuições e seria um forte incentivo aos patrões para fazerem crescer as remunerações e os prémios sem tributação nem impostos, que o Chega também defende. Com tal medida, demagógica e inviável, fragilizaria também a contratação colectiva que tem na negociação salarial um elemento central. Um autêntico três em um para atacar os fundamentos do Estado Social por parte de quem chora lágrimas de crocodilo pelos pensionistas no leilão eleitoral. Animado pelo seu crescimento eleitoral, o partido Chega proclamou em 2022 o objectivo de criar uma organização sindical própria, inspirada no modelo de sindicato criado pelo Vox em Espanha, e utilizando o mesmo nome: Solidariedade. Um exemplo de manipulação e apropriação oportunísticas de uma palavra e um princípio caro aos trabalhadores e ao sindicalismo. É verdade que sem sucesso até agora, tal como também fracassou o projecto sindical do Vox em Espanha, que não conseguiu enfraquecer a representação das confederações e sindicatos representativos.
Isto não nos pode descansar nem nos dispensa de ler e procurar compreender os sinais de simpatia e adesão ao Chega que se manifestam em locais de trabalho, em alguns sindicalistas, ex-sindicalistas e membros de comissões de trabalhadores, em segmentos dos trabalhadores atraídos pelo seu discurso de protesto, demagógico e simplificador da realidade, de que é exemplo maior o que se está a passar com o movimento de luta dos agentes da PSP e da GNR por reivindicações que são essencialmente justas, e também noutros sectores profissionais onde se têm verificado importantes lutas sociais e que o Chega e os seus agentes procuram penetrar e instrumentalizar politicamente.
O sindicalismo é nos seus princípios e valores oposto aos propósitos da extrema-direita. Nasceu e desenvolveu-se na base da solidariedade de classe entre todos os trabalhadores, insisto, todos os trabalhadores, nos combates pela igualdade e contra todas as discriminações, na defesa do Estado Social e na conquista de mais direitos por oposição ao capital. O contrário do que prega e pretende a extrema-direita que quer dividir os trabalhadores em bons e maus, que quer dirigir o seu protesto para o lado e para baixo, para os mais frágeis entre os explorados e oprimidos, em vez de olhar para cima, e que assim mantém intocáveis os verdadeiros responsáveis das desigualdades crescentes e do perigoso estado de coisas actual, o neoliberalismo global e os grandes interesses que condicionam a política portuguesa.
Enterrar a cabeça na areia não é solução nem caminho. Não vale a pena ignorar o elefante na sala da democracia. É decisivo enfrentar o problema e o perigo onde mais importante é travar a batalha das ideias. O mundo do trabalho é decisivo e central para assegurar o futuro da democracia, essa conquista sempre frágil, incompleta e nunca garantida. Importa avaliar os riscos, estudar a sua narrativa, procurar compreender as razões dos seus apoiantes, sobretudo entre os trabalhadores e as classes populares, e debater os caminhos para disputar e reduzir a sua influência.
Por isso decidimos na Práxis dar um pontapé de saída e organizar este primeiro debate. Somos fiéis à nossa natureza de associação e espaço plural que se propõe promover a reflexão e o estudo dos problemas críticos e estratégicos para a renovação e fortalecimento do sindicalismo e do mundo do trabalho. Com este debate propomos fazer a análise concreta da realidade concreta, avaliar o estado das coisas, a efectiva capacidade de atracção política, social e laboral da extrema-direita, as suas narrativas, quais as vulnerabilidades e fraquezas nas políticas públicas, na relação do sindicalismo e das esquerdas com os trabalhadores, que facilitam a penetração das ideias do partido Chega. E, fazendo esta radiografia, debatermos quais as estratégias que permitam capacitar os activistas laborais e o mundo do trabalho organizado, todos quantos acreditam na relação intrínseca entre sindicalismo e democracia, para conter e derrotar os propósitos da extrema-direita populista de conquistar a hegemonia nos trabalhadores e nas classes populares.
Temos hoje connosco para introduzir este debate, certamente exploratório e exigindo continuidade e um envolvimento maior das próprias organizações de trabalhadores, o Miguel Carvalho e o Manuel Morais.
O Miguel Carvalho é um qualificado e prestigiado jornalista de investigação, que é autor de uma já significativa e extensa obra publicada em diversos domínios, de que destaco a sua obra notável sobre Amália Rodrigues e o livro Quando Portugal Ardeu – Histórias e segredos da violência política no pós-25 de Abril – onde analisa o terrorismo e as redes bombistas da extrema-direita. O Miguel, conhecido pela sua qualidade profissional e pela sua coragem e empenhamento cívicos, tem dedicado boa parte do seu trabalho jornalístico à investigação da extrema-direita em Portugal, tendo publicado na revista Visão trabalhos jornalísticos de grande valor sobre este tema. Continua actualmente dedicado à análise e estudo dos partidos e movimentos de extrema-direita e à sua influência na sociedade.
O Manuel Morais é também publicamente conhecido pela sua coragem cívica e convicções democráticas. Agente operacional da PSP na Unidade Especial de Polícia, antropólogo de formação que se licenciou com um estudo sobre a relação da polícia com os jovens nos bairros periféricos, foi vice-presidente da ASPP, o maior sindicato da PSP, de que se demitiu na sequência das pressões que ele próprio e o sindicato receberam por causa da sua corajosa denúncia da existência de comportamentos racistas na PSP. Mais recentemente, foi alvo de uma suspensão disciplinar por parte de uma anterior direcção da PSP por ter atacado publicamente André Ventura como racista, depois revertida nas suas implicações na carreira profissional pelo actual director nacional da PSP, que assim fez justiça à sua condição de profissional íntegro. O Manuel Morais foi ainda fundador e é vice-presidente da Associação 100 Violência – um observatório dedicado ao objetivo de prevenir e combater a criminalidade e os maus-tratos físicos ou psíquicos sobre as crianças e de pugnar pela protecção dos seus direitos.
Este debate está, pois, em muitos boas mãos.
Notas finais no encerramento do debate:
O debate e a partilha que aqui fizemos, o testemunho e a experiência vivida e pessoal do Manuel Morais nas forças de segurança e o estudo muito valioso do Miguel Carvalho, indo ao encontro das pessoas no terreno para compreender o seu posicionamento, motivações e as razões da progressão da extrema-direita em praticamente todas as áreas da sociedade e do mundo do trabalho, trouxeram novos dados concretos e preocupantes que vão muito além da imagem transmitida pela bolha mediática, e devem alavancar uma renovada atenção das forças progressistas e do movimento sindical, para analisar, julgar e agir contra esta ameaça ao Estado Social de Direito e Democrático.
É imperativo não cair no engodo da normalização política e sindical da extrema-direita que grande parte do comentário mediático e os partidos da direita promovem, incorporando até nas suas propostas políticas grande parte da agenda daqueles, como ainda agora sucedeu em França com a lei Macron anti-imigração. Como se tem visto por todo o lado, a normalização não apazigua a extrema-direita nos seus propósitos nem trava o seu crescimento. É preciso um combate decidido às suas ideias.
Mas é também preciso, como sugere o Miguel Carvalho, que nos concentremos mais no resgate para o campo democrático de grande parte da base eleitoral do Chega do que nos discursos do seu líder. Para isso é imperativo não cairmos na tentação de uma lógica binária, polarizadora e reducionista que confunda as origens e as convicções fascizantes de uma parte dos seus membros com a maioria dos seus apoiantes, que é preciso não desistir de incorporar no campo democrático.
Os sindicatos são lugares de construção da solidariedade de classe e portadores da vocação universalista dos combates pela igualdade. A mensagem do sindicalismo genuíno de união de todos os trabalhadores, sem distinção de cor, etnia, nacionalidade, género ou orientação sexual, opõe-se à demagogia populista e divisiva da extrema-direita. Os sindicatos são por isso decisivos para responder à revolta dos trabalhadores face às desigualdades, injustiças e desafios novos das mudanças no trabalho, e às perplexidades de muitos perante as incertezas e mudanças societais e culturais aceleradas do nosso tempo. Os sindicatos a todos podem representar e integrar no campo democrático e no combate por mais e melhor Estado Social. Não podemos pois deitar a toalha ao chão pelas fragilidades do sindicalismo, onde se manifestam, como nas forças de segurança. Desistir dos sindicatos nunca é opção.
Esperamos que esta iniciativa pioneira da Práxis no espaço público da cidadania alerte e anime uma maior atenção e análise e acção das forças progressistas e do sindicalismo quanto ao que se passa nos locais de trabalho, para compreenderem melhor as razões do que está a acontecer e para que possam definir um combate decidido a esta infecção cujo contágio enfraquece a unidade dos trabalhadores e põe em risco conquistas e direitos duramente alcançados e a própria democracia, que hoje compreendemos ser um bem frágil que precisa de ser permanentemente alimentada e defendida.
Noutras paragens, confederações sindicais e sindicatos despertaram e deitam já mãos à obra de promover análises, conferências, programas de formação e definição de orientações para o combate à extrema-direita nos locais de trabalho. As CCOO de Espanha realizaram em Outubro passado um congresso sobre este tema, são conhecidos os estudos e os programas da grande central sindical alemã, a DGB, neste domínio, ou a reflexão da grande central sindical britânica, os TUC. A Confederação Europeia de Sindicatos e centrais sindicais nacionais, como as CCOO de Espanha, a CGT francesa, centrais sindicais do Chile ou da Argentina, reuniram-se numa rede internacional de sindicatos antifascistas.
Que cada um de nós encontre neste frutuoso debate o estímulo para “fazer o trabalho de casa” e dar um novo impulso à reflexão, ao estudo e à busca de respostas nas instituições, nos sindicatos, nas forças políticas, nas organizações cívicas e sociais, que sustentem um combate mais informado e eficaz a este risco maior para a democracia política e social e os direitos laborais.
A gente vai continuar.
Seixal, 08/02/2024.
Henrique Sousa