Uma nota introdutória:
Esse documento foi produzido por uma comissão constituída pelo governo do PS em 2022, cujo despacho definia como seu exclusivo objetivo a ” realização de um livro verde para a sustentabilidade do sistema previdenciário, especificamente no que diz respeito ao aspecto das pensões ” e foi apresentado em 16 de outubro, dois anos depois e já sob comando do novo governo da direita, ao grupo de trabalho sobre a sustentabilidade da Previdência formado na Comissão Permanente de Concertação Social.
É questionável a decisão política do anterior governo de ter avançado deste modo para o estudo da sustentabilidade do regime previdencial, num momento (então como agora) em que a saúde financeira do sistema é conhecida, com o FEFSS a atingir reservas financeiras que dão para pagar até dois anos das pensões atuais e com altos saldos positivos nas contas anuais. O conhecimento e os quadros técnicos ainda existentes no MTSSS teriam permitido ao Governo anterior lançar os estudos necessários, em vez da operação política decidida, como se vê aliás pelo evidente recurso no documento a esse saber e dados para formularem suas recomendações. A composição da comissão também levantou e suscita reservas quanto ao equilíbrio técnico e político de sua composição, e quanto à suficiente representação em seu seio daqueles que defendem inequivocamente a previdência pública e o atual regime previdenciário.
Finalmente, o Livro Verde apresentado também excede significativamente o escopo do mandato atribuído no despacho. É o caso do capítulo e propostas sobre a expansão dos regimes complementares de capitalização, ampliando de fato o escopo estabelecido no despacho, e tendo a comissão obtido para isso o respaldo político do ministro da área no governo anterior.
Misturar a discussão da sustentabilidade do regime previdencial público com a discussão da expansão dos regimes complementares privados é assim uma porta aberta para um debate que pode ser viciado, porque tende a favorecer a perspectiva, também presente no Livro Verde, de que a resposta à dificuldade do sistema de valorizar e pagar pensões mais justas está na poupança e no investimento, com benefícios fiscais, em soluções oferecidas pelos mercados financeiros.
Não se trata de desvalorizar ou combater a poupança voluntária e individual para fundos de pensões ou o desenvolvimento, com suporte na negociação colectiva, de planos complementares de reforma nas empresas, com participação e controlo dos trabalhadores. São isso mesmo, complementares, devem ser voluntárias e claramente diferenciadas da questão fundamental de proteger, consolidar e desenvolver o regime previdencial público como central para o sistema de protecção social português e cuja solidez tem sido comprovada continuadamente, desmentindo os presságios dos que sucessivamente anunciaram a sua falência.
Dito isto, é indispensável que o mundo do trabalho organizado e todos quantos defendem e se interessam pela defesa e pelo futuro do regime previdencial como componente essencial do nosso Estado Social participem activamente neste debate público do Livro Verde e das suas 18 recomendações, não deixando o espaço público e a discussão política nas mãos dos que não abandonaram o seu propósito de conquistar mais terreno para o sector privado em detrimento da Segurança Social pública. Não esqueçamos o que aconteceu na Saúde.
Importa também que no debate sobre o aperfeiçoamento e o futuro do regime previdencial seja protegida a vinculação essencial ao trabalho e à tributação dos rendimentos do trabalho quando se debatem os modos de financiamento, bem como a preservação dos princípios de contributividade – a relação sinalagmática entre as contribuições e as prestações – e de solidariedade – regime de repartição assente na solidariedade entre trabalhadores no activo e reformados e entre gerações.
Algumas notas breves sobre o conteúdo e o debate público em curso, sem a pretensão de antecipar uma leitura crítica sistemática do documento que importa fazer:
Previna-se desde já que este Livro Verde não é nenhum programa global e sistemático de reforma neoliberal do regime previdenciário, nem propõe o contestado teto. Mas contém, a par de recomendações, reafirmação de princípios e várias propostas de sinal positivo, outras ideias e sugestões que podem dar a este governo de direita mais munições para tentarem mudar na opinião pública a actual percepção dominante da solidez da Segurança Social e desse modo tentarem promover reformas do regime que ampliem o espaço de penetração dos mercados financeiros, os quais há muito querem disputar uma parte do bolo dos recursos. A ministra da área, acadêmica adepta da agenda liberal, já mostrou a que vem com seu propósito anunciado de revisão e regressão do que de mais progressivo teve a reforma trabalhista recente.
Dos grandes pilares públicos do Estado Social, depois do grande crescimento do setor privado às custas da Saúde e da Escola públicas, é a Previdência Social, que tem revelado solidez e estabilidade, o setor que suscita os apetites renovados do capital e do sistema financeiro.
Ora a direita já aprendeu, com a tentativa derrotada de Passos Coelho em reduzir fortemente a TSU para os patrões (que provocou então uma das maiores manifestações populares em Portugal), que para mexer gradualmente no regime previdencial tem de primeiro abalar fortemente a sua credibilidade, anestesiar a resistência dos trabalhadores e hegemonizar o espaço e a opinião pública, quebrando o evidente apoio social a esse regime previdenciário cuja resiliência tem sido comprovada. Tentarão para isso usar a seu favor esse debate público, como já se percebeu tanto pelas intervenções e propostas das confederações patronais e de alguns peritos liberais divulgadas na imprensa, quanto pela clara disposição da ministra em acolher suas contribuições.
Sim, é preciso mesmo estudar e debater o fortalecimento e a sustentabilidade no longo prazo do regime previdenciário como sistema público, tomar medidas para uma cobrança mais efetiva dos muitos bilhões de euros acumulados em dívidas dos contribuintes e defender políticas sociais que promovam melhores salários e empregos seguros. Mas não é casual que dirigentes patronais invoquem o atual conforto financeiro do regime previdenciário para renovar a proposta da baixa da TSU ou que alguns agitem
projeções de longo prazo sobre o valor das aposentadorias e o equilíbrio financeiro do sistema (que, como se sabe, são sucessivamente modificadas em função da mudança das variáveis econômicas), para justificar o investimento do Estado no apoio aos fundos privados de pensão. São os mesmos que aceitam a precarização do trabalho como uma fatalidade e escondem que o grande aumento da produtividade tem contribuído para compensar a pressão do envelhecimento e da demografia sobre o sistema e preservar os benefícios sociais.
O conteúdo das 18 recomendações merece análise crítica cuidadosa e abrange questões muito relevantes e com consequências quanto ao sentido e orientação das escolhas e decisões políticas que possam originar. Alguns exemplos:
A diversificação das fontes de financiamento, incluindo a criação de uma contribuição sobre o valor adicionado líquido das empresas que pudesse tornar mais equilibrada a carga sobre as empresas de trabalho intensivo e de capital intensivo, mas que, na proposta feita, parece não acrescentar, antes subtrair, do pagamento da atual TSU, assumindo a neutralidade contributiva. A revisão e atualização legal da TSU na sua distribuição pelas eventualidades cobertas (doença, desemprego, velhice etc.), a possível extensão a outras eventualidades (a dependência), a eventual transferência da parentalidade para o regime não contributivo e a sugestão da saída do financiamento de políticas ativas de emprego e formação para fora do perímetro previdenciário. Um regime mais restritivo de aposentadorias antecipadas e sua sujeição geral à ponderação do aumento da expectativa média de vida, com base na simplificação e sistematização das modalidades existentes. A indexação da idade mínima para trabalhar na administração pública à idade normal de aposentadoria. A reavaliação e aprofundamento da convergência da base de contribuição com a base de cálculo tributária, limitando os impactos negativos sobre as receitas de contribuição e os direitos de beneficiários que decorrem do conjunto de isenções e exclusões. A revisão do modelo de gestão de reservas financeiras do FEFSS, aumentando a parte investida no mercado de capitais de maior risco e supostamente de maior remuneração e diminuindo a parte aplicada em dívida pública. A reformulação do mecanismo de atualização do valor de aposentadorias em pagamento, justificada com argumentos positivos, como assegurar a previsibilidade e segurança de renda dos aposentados e a manutenção de seu poder aquisitivo, mas cujas medidas exigem cuidadosa ponderação.
Três recomendações são especificamente dirigidas ao desenvolvimento do mercado financeiro nos regimes complementares de pensões : benefícios fiscais em sede de IRS e IRC para promover os planos individuais complementares, tenham carácter público (os certificados de reforma que os Governos nunca divulgaram para não ofender a oferta privada ) ou privado (os PPR…);, em nome do estímulo à poupança; consignar a parcela de 1% do ICMS pago a uma conta individual de capitalização, pública ou privada, configurando assim um regime obrigatório e não voluntário, como ocorre até aqui nos regimes complementares de capitalização; promover a criação e ampliação de planos profissionais complementares nas empresas, sustentados pela negociação coletiva e alterando a legislação desses regimes complementares para ajustá-la ao regime dos fundos de pensão. A respeito dos planos profissionais complementares e sua função, é importante lembrar o que diz a CLT (478 § 2º): O instrumento de regulamentação coletiva de trabalho pode instituir regime complementar contratual que atribua benefícios complementares do subsistema previdenciário na parte não coberta por este , nos termos da lei. Esse limite legal é importante para separar as águas entre o regime público de previdência e a possibilidade de negociação coletiva de complementações de aposentadoria, que não substituem nem devem concorrer com o regime previdenciário.
Para concluir, ainda duas observações críticas:
1 – Mais participação é preciso.
Apesar das recomendações do Livro Verde incluírem a necessidade de mais transparência, mais informação e mais acompanhamento da sustentabilidade financeira da Previdência Social, atribuindo poderes ao Conselho de Finanças Públicas para sua análise regular e propondo a criação de um conselho consultivo, o papel é ignorado essencial que os representantes dos trabalhadores podem e devem ter e não é feita reflexão sobre o estado de (des)cumprimento do princípio constitucional (artigo 63, § 2º) que determina que ” incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de seguridade social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários . Quanto ao conselho consultivo proposto, é ao menos estranho que, antes de propor mais um órgão dessa natureza, não seja avaliado o mau estado de funcionamento e a irrelevância do Conselho Nacional de Políticas de Solidariedade e Segurança Social e das respectivas comissões especializadas (DL 48 /2017), onde está prevista a participação de representantes das confederações sindicais, patronais e das associações de aposentados, bem como doutros conselhos consultivos existentes nas instituições desta área. É hora de exigir uma participação mais efetiva e valorizada dos representantes dos beneficiários diretos da Previdência Social, dos trabalhadores e dos aposentados, que possa contribuir para a transparência, a qualidade, a sustentabilidade e a melhoria da capacidade de resposta do sistema. O Livro Verde falha nessa questão.
2 – Misturar Regime Previdencial com Caixa Geral de Aposentações (CGA) é um caminho com riscos que exige atenção cuidada.
No conteúdo do Livro Verde, é patente a inclinação, na análise e nas recomendações, para promover uma abordagem integrada do financiamento, da tutela e acompanhamento e da gestão do regime previdencial e da Caixa Geral de Aposentações. Dedicando à CGA um capítulo próprio, fazem a crítica da separação funcional vigente dos dois sistemas, considerando que ela tem favorecido “a falta de transparência na avaliação da situação financeira do conjunto dos sistemas contributivos” e a separação orgânica da CGA e dos institutos responsáveis pela gestão da Segurança Social. Desenvolvendo extensa argumentação sobre as virtudes da gestão e acompanhamento conjuntos a propósito das interacções entre os dois subsistemas, é proposto também que o Centro Nacional de Pensões passe a gerir a CGA. Como o próprio documento reconhece, a CGA é um sistema fechado, para o qual durante muito tempo o Estado não cumpriu as suas obrigações contributivas e que no longo prazo tenderá para a extinção, já que as contribuições respeitam apenas aos trabalhadores da administração pública mais antigos e a sua maioria já fazem parte do regime previdencial. Inevitavelmente apresentará uma situação deficitária crescente pela desproporção entre a responsabilidade pelo pagamento das pensões e as receitas recolhidas. É também sabido que por cá são sobretudo os que propugnam a insustentabilidade financeira do regime previdencial e o ataque aos seus fundamentos, os que nos seus cálculos mais usam números conjuntos de um sistema fechado (a CGA) e de um sistema aberto e autofinanciado (o regime previdencial) para fundamentar as suas teses. Apesar de algumas cautelas expressas no Livro Verde, o caminho escolhido facilita o trabalho dos que precisam abalar a confiança e a autonomia do regime previdencial, a componente mais sólida do nosso sistema de segurança social, para abrirem mais a porta ao sistema financeiro.
É pois tempo de o mundo do trabalho organizado e todos quantos defendem uma Segurança Social pública e universal, se prepararem e mobilizarem para um debate participado e esclarecido que contribua para reforçar e assegurar o futuro da grande conquista democrática que constitui a Segurança Social pública e universal, assente nos seus dois pilares essenciais: o regime previdencial de natureza contributiva, alimentado pelos rendimentos do trabalho e o regime de protecção social de cidadania alimentado pelo OE.
Matosinhos, 12 de Novembro de 2024.
Henrique Sousa